A Consciência da História: Gadamer e a Hermenêutica
Ernildo Stein
Durante décadas, a obra concentraria a
discussão filosófica na Alemanha: Ela primeiramente foi recebida como uma
contraposição às ciências do espírito que interpretaram mal a palavra
"compreender" como método. O livro tinha por objetivo apresentar o
compreender do intérprete como fazendo parte de um acontecer que decorre do
próprio texto que precisa de interpretação.
O que estava em jogo era o fato de que
as ciências históricas do espírito tinham estremecido a confiança da filosofia
numa razão que perpassa a história. Gadamer tinha compreendido a nova
tematização do "tempo" em "Ser e Tempo" (1927), de
Heidegger: se o tempo é o horizonte de toda compreensão, todas as teorias devem
converter-se inelutavelmente em formações históricas, e isso afetara o núcleo
da razão.
Gadamer percebera, pelo seu estudo dos
gregos, da filosofia clássica alemã e da fenomenologia, que a tradição não
podia mais se apoiar, num sentido filosófico relevante, nas interpretações
metafísicas da razão. O diagnóstico da perda da possibilidade de um compromisso
possível de nossas orientações fundamentais para a vida numa tal tradição leva
Gadamer a introduzir a perspectiva hermenêutica.
Temos assim, segundo v filósofo, para
substituir nosso apoio na metafísica, a perspectiva de os próprios
participantes se empenharem na apropriação viva de tradições que os determinam.
O ser humano esclarecido só tinha, como participante da tradição, uma
interpretação das próprias condições históricas que, vindas da tradição, o
determinam.
É assim que Gadamer se volta para o
trabalho de encontrar o caminho para a consciência histórica, numa apropriação
da tradição que preserve para esta a força do compromisso. Esse caminho a
hermenêutica filosófica explora na crítica da falsa auto-compreensão
metodológica das ciências do espírito. O filósofo pretende salvar a substância
da tradição por meio de uma apropriação hermenêutica..
É assim que a filosofia hermenêutica de
Gadamer encontra na força civilizatória da tradição a autoridade de uma razão
diluída do ponto de vista da história efetiva. Gadamer, portanto, não traz de
volta a metafísica nem mesmo uma ontologia salvadora; o que lhe importa é
mostrar como a razão deve ser recuperada na historicidade do sentido, e essa
tarefa se constitui na auto-compreensão que o ser humano alcança como participante
e intérprete da tradição histórica. Se nós formos limitar a indicação dos
motivos determinantes que estão presentes num tal estilo de pensamento,
poderíamos encontrar as seguintes etapas: o diálogo e a dialética em Platão, a
hermenêutica e o diálogo, a arte como paradigma da experiência hermenêutica, o
estabelecimento das tarefas de uma hermenêutica filosófica e a universalidade
da experiência hermenêutica e, por fim, a aplicação como momento do
compreender, a hermenêutica como filosofia prática.
Gadamer afirma, na introdução de seu
livro, o seguinte: "As análises que seguem começam (por isso) como uma
crítica da experiência estética, para defender a experiência de verdade que nos
é dada pela obra de arte, contra a teoria estética que se deixa estreitar pelo
conceito de verdade da ciência. As análises, entretanto, não param na
justificação da verdade da arte. Elas procuram antes desenvolver, desde esse
ponto de partida um conceito de conhecimento e de verdade que corresponde ao
todo de nossa experiência hermenêutica. Assim como temos que nos haver, na
experiência da arte, com verdades que ultrapassam basicamente a esfera do
conhecimento metódico, do mesmo modo algo semelhante vale para o todo das
ciências do espírito, nas quais nossa tradição histórica é transformada também
em objeto da pesquisa, em todas as suas formas, mas ao mesmo tempo ela mesma
passa a falar em sua verdade. A experiência da tradição histórica ultrapassa
fundamentalmente aquilo que nela é pesquisável. Ela não apenas é verdadeira e
não-verdadeira, no sentido sobre o qual decide a crítica histórica - ela medeia
constantemente a verdade na qual importa tomar parte".
Portanto "Verdade e Método"
fala-nos de um acontecer da verdade no qual já sempre estamos embarcados pela
tradição. Gadamer vê a possibilidade de explicitar fenomenologicamente esse
acontecer em três esferas da tradição: o acontecer na obra de arte, o acontecer
na história e o acontecer na linguagem. A hermenêutica que cuida dessa verdade
não se submete a regras metódicas das ciências humanas, por isso ela é chamada
de hermenêutica filosófica. É desse modo que Gadamer inaugura um lugar para a
atividade da razão, fora das disciplinas da filosofia clássica e num contexto
em que a metafísica foi superada.
Mas, apesar de a hermenêutica
filosófica desenvolver-se numa perspectiva crítica da metafísica, ela apresenta
uma pretensão de universalidade. Porém tal universalidade assume uma forma não
dogmática, restando-lhe, portanto, uma universalidade que se move muito próxima
da universalidade da crítica. Jürgen Habermas foi um dos primeiros a serem '
tocados pela pretensão de universalidade da hermenêutica.
Ele reconhece-lhe assim algumas
características importantes: a) a hermenêutica é capaz de descrever as
estruturas da reconstituição da comunicação perturbada; b) a hermenêutica está
necessariamente referida à práxis; c) a hermenêutica destrói a auto-suficiência
das ciências do espírito assim como em geral elas se apresentam; d) a
hermenêutica tem importância para as ciências sociais, na medida em que
demonstra que o do- mínio objetivo delas está pré-estruturado pela tradição e
que elas mesmas, bem como o sujeito que compreende, têm seu lugar histórico
determinado; e) a consciência hermenêutica atinge, fere e revela os limites da
auto-suficiência das ciências naturais, ainda que não possa questionar a
metodologia de que elas fazem uso;f) finalmente, hoje uma esfera de
interpretação alcançou atualidade social e exige, como nenhuma outra, a
consciência hermenêutica, a saber, a tradução de informações científicas
relevantes para a linguagem do mundo da vida social.
Ainda que as observações de Habermas
reconheçam aspectos da universalidade da hermenêutica filosófica, ele o faz, em
contraste, com a pretensão de universalidade da crítica com a qual ele pretende
atingir campos onde a hermenêutica filosófica não saberia trabalhar. Não é só
por parte de Habermas que se ouvem essas críticas à hermenêutica filosófica,
ela também é objeto de crítica da filosofia analítica. Esta vê na historicidade
da linguagem e na pré-compreensão como condição de todo- discurso uma falta de
recursos para examinar pretensões de validade dos textos que são interpretados
("Tugendhat").
Na medida em que a hermenêutica
filosófica trabalha com o sentido, a analítica reduz a linguagem à unidade
mínima que é o significado. Mas espíritos mais conciliadores se contentam em
afirmar que a hermenêutica sem a filosofia analítica é cega e a filosofia
analítica sem a hermenêutica é vazia.
Virada hermenêutica Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e
definitiva: uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como
princípio, e outra coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto -
ou de caráter existencial, ou com as características do acontecer da tradição
na história do ser - em que interpretar permite ser compreendido
progressivamente como uma autocompreensão de quem interpreta. E, de outro lado,
a hermenêutica filosófica nos ensina que o ser não pode ser compreendido em sua
totalidade, não podendo assim, haver uma pretensão de totalidade da
interpretação.
O filósofo produziu realmente uma
virada hermenêutica do texto para a auto-compreensão do intérprete que como tal
auto-compreensão somente se forma na interpretação, não sendo, portanto, possível
descrever o interpretar como produção de um sujeito soberano.
Para encerrar essas considerações,
convém ouvir o filósofo falando de sua talvez mais surpreendente afirmação:
"Ser que pode ser compreendido é linguagem".
"É assim que sempre me esforcei, de
minha parte, para guardar para o espírito o limite imposto a toda experiência
hermenêutica do sentido. Quando eu escrevia: 'O ser acessível à compreensão é
linguagem', importava ver, nessa fórmula, que o que é não pode jamais ser
compreendido em sua totalidade. Em tudo o que uma linguagem desencadeia consigo
mesma, ela remete sempre para além do enunciado como tal."
In Mais, caderno especial
de Domingo da Folha de São Paulo, 24/03/02.
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